Os clientes de C. Khunz

20 04 2007

O número de sócio de C. Khunz na associação de barbeiros era o 5673.Não havia mais ninguém na associação de barbeiros com o número 5673 o que o tornava inconfundível. Embora isso só acontecesse por causa de um algarismo C. Khunz tinha nisso orgulho.
Apesar de só ser inconfundível por causa de um algarismo C. Khunz tinha características próprias. Começava a fazer a barba aos seus clientes sempre da esquerda para a direita. O cabelo cortava-o da direita para a esquerda. Demorava, exactamente, cinco minutos e meio a fazer uma barba e sete minutos e meio a cortar um cabelo. Independentemente do tamanho. Num bom dia C. Khunz gastava uma embalagem de creme de barbear. Num mau dia ficava-se pelos dois terços.
C. Khunz gastava mensalmente 150 caixas de lâminas de barbear, 6 frascos de after-shave e 10 de shampôo.
C. Khunz tinha 46 anos e a média de idades dos seus clientes era de 36 anos. Havia por isso uma diferença de 10 anos entre a sua idade e a média de idades dos seus clientes. 10 anos era, exactamente, o tempo que C. Khunz tinha a barbearia. Como na maioria das coincidências não havia muito a explicar.
C. Khunz tinha muitos clientes. Tinha um cliente que era músico e que era bastante reservado. Tinha outro que era actor e razoavelmente extrovertido. Outro que era agente artístico que umas vezes era tímido e discreto e outras expansivo e falador e que dizia ter familiares provenientes da família do Sr. La Palice que como se sabe quinze minutos antes de morrer, ainda, estava vivo. Havia, também, dois que eram amigos. Um – com baixa auto-estima – achava que a melhor perspectiva sobre as coisas era a dos outros e o outro – sem problemas de auto-estima – que achava que a melhor (e provavelmente única) perspectiva sobre as coisas era a sua.
Outro cliente, diferente de todos os outros, mas que recorria a C. Khunz pelas mesmas razões era, extremamente, metódico. Sempre que ía à barbearia pedia que C. Khunz lhe cortasse o seu cabelo debaixo para cima, da esquerda, para a direita e a barba no sentido inverso dos ponteiros o que era muito complicado para C. Khunz pois começava a fazer a barba aos seus clientes sempre da esquerda para a direita e o cabelo cortava-o da direita para a esquerda.
Um cliente que gostava de ser surpreendido solicitou-lhe que nunca lhe cortasse o cabelo da mesma maneira. Dava-lhe total liberdade para lho aparar segundo a sua inspiração, engenho e capacidade técnica. Da barbearia saiu com o cabelo com consistência cor e cortes estranhos, ridículos, emabaraçantes ousados mas nunca iguais. A ninguém pediu C. Khunz explicações pois como é sabido para o melhor e para o pior o cliente tem sempre razão.





Comparações e primeiras impressões

9 04 2007

Q uando C. Khunz abriu a barbearia muitos o compararam com o antigo dono cuja prática o tornara célebre a quarteirões de distância e procurado por pessoas de outras cidades que só em si depositavam confiança para lhes fazer a barba e cortar o cabelo. Foi muita a suspeita de que C. Khunz não estivesse à altura de semelhante herança. Os primeiros tempos não foram fáceis. Talvez porque tinha um problema que agora o prejudicava bastante: as primeiras impressões.
– «Nunca tive muito sucesso com a primeira impressão», dizia. Aliás, C. Khunz dava tudo para passar directamente para a seguinte.
– «Sou um tipo de segundas impressões. A primeira só me prejudica. Pressupõe cerimónia, cortesia e acatamento que não disponibilizo. Passava bem sem ela. Porque raio tem de haver primeira impressão? Porque raio tenho de arcar com as consequências de uma coisa em que não tenho responsabilidade? Dá-se demasiada importância à primeira impressão. A primeira impressão só favorece tipos como Valentino e eles existem numa relação de 0.4 Valentinos para 5879 C. Khunz’s. Devia existir um decreto que ilegalizasse o uso da primeira impressão. Que a tornasse obsoleta. Sem préstimo. Odiada. Votaria num partido que tivesse essa proposta. Mobilizaria todos os que sofressem do flagelo da primeira impressão. Seríamos muitos. Poucos a princípio, é certo, que ninguém gosta de admitir ser mau na primeira impressão mas o número aumentaria, até sermos mais dos que usufruem, há anos, da primeira impressão. Abaixo a primeira impressão. Viva a segunda, terceira ou quarta.» Esta era a posição de C. Khunz em relação à primeira impressão que pouco ou nada mudou ao longo dos anos.
No fim-de-semana da primeira semana de actividade da barbearia o jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz marcou três golos e foi considerado o melhor jogador da jornada. Durante a semana seguinte foi idolatrado por todos. Todos os jornais apresentaram artigos sobre ele e as televisões disputaram a sua comparência nos seus horários nobre. No fim-de-semana da segunda semana de actividade da barbearia o jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz foi expulso durante o jogo acom a equipa rival e foi considerado o pior jogador da jornada pela sua falta de desportivismo. No fim-de-semana da terceira semana de actividade da barbearia ninguém se lembrava do jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz.
No segundo mês de actividade C. Khunz tinha mais clientes do que o antigo dono da barbearia.





Dificuldades do choro

18 03 2007

M.Hermann ao contrário do seu amigo C. Khunz não era, propriamente, aquilo a que se chama uma pessoa emotiva. Muito pelo contrário. Faltavam-lhe características essenciais para o ser. E o ser é, como se sabe, bastante exigente requerendo, logo à partida, o poder ser. A M. Hermann falhava, provavelmente, dois terços do mínimo exigível para ser emotivo. E isso porque a emotividade tem graus, podendo o indivíduo ser, pelo menos, pouco emotivo, emotivo ou muito emotivo. M. Hermann estaria, na melhor das hipóteses, no patamar abaixo do indivíduo pouco emotivo. M. Hermann carecia para ser uma pessoa emotiva de quantidade de sentimentos correspondente. Em certa ocasião fez notar isso aos que o rodeavam e que não percebiam a sua natureza, nomeadamente a sua amiga Hanna C, ela uma criatura muito emotiva que não entendia a incapacidade de M. Hermann de se emocionar.
Talvez devido à sua indigência emocional (ou por outra razão menos evidente e pelo que foi dito agora a despropósito) durante anos M. Hermann nunca chorou. Isto embora, em algumas ocasiões, tivesse tido motivos para isso. Em situações muito numerosas até. E a quantidade, também, tem relação com as vezes que se chora sendo esta uma razão evidente para isso e pelo que foi dito sem vir agora a despropósito. Como quando partiu as duas pernas, lhe desapareceram todas as bagagens no aeroporto, ou lhe faleceu um amigo de infância. A certa altura M. Hermann, inexplicavelmente, começou a chorar e só parou decorridos três dias. Não percebeu porquê. Nem ninguém. Especialmente Hanna C., ela sim, uma pessoa emotiva. Afinal tinha acabado de receber o reembolso do IRS.





Dificuldades discursivas

27 02 2007

C. Khunz não conseguia falar em público. Carecia para isso de articulação e prosápia. No dia da abertura da sua barbearia, durante a inauguração, solicitaram-lhe que, extemporâneo, brindasse os convidados com discurso. C. Khunz vendo-se em apuro concebeu uma estratégia para ultrapassar o seu embaraço. Uma vez que é sabido que, para a maioria, dos infortúnios há remédio ajustado. E que é da necessidade que saíem as melhores respostas pela capacidade adelgaçante que tem para com o engenho. Sabendo que o problema para si eram as pessoas pois quando ensaiava os discursos em casa tudo lhe saía bem, primeiramente resolveu imaginar a sala vazia. Não resultou e verificou que isso era, até, pior pois era-lhe difícil dirigir-se a um público abstracto. Resolveu, assim, imaginar as pessoas como objectos. Dividiu o auditório em três classes: objectos esféricos, cilíndricos e cubos. Depois identificou-os para mais facilmente se dirigir a eles: lápis, esferográficas, caixas e bolas. Fragmentou-as, posteriormente. em sub-classes: lápis nº1, 1A e B nº2, C e D nº3, A, nº4, F, nº5, A, D, E e F, esferográficas pretas, vermelhas e azuis, de ponta fina e grossa, caixas grandes, pequenas e assim-assim e bolas de uma, duas, três e quatro cores.
Reparou que durante o seu discurso, uma vez que não havia lugares marcados, os lápis nº1 A, trocaram de lugar com os B e os nº2 ocuparam os dos C e D os nº3 com os nº4 e nº5 as esferográficas pretas, vermelhas e azuis, de ponta fina e grossa saíram em grupo, deixou de ver as caixas grandes, pequenas e assim-assim bem como as bolas de uma, duas, três e quatro cores. Todo o seu horizonte de sentido tinha sido alterado. Entrou em pânico. Deixou de reconhecer o seu público. O que, como se sabe, é terrível e impossibilita uma comunicação efectiva. Dirigia-se a um público e, afinal, falava, com outro. O seu discurso não estava, claramente, adaptado ao seu auditório. C. Khunz não conhecia o seu público e, por isso, não o conseguia conquistar.
No primeiro aniversário da barbearia C. Khunz traumatizado como que sucedera no ano anterior e uma vez que o seu problema se mantinha imaginou os seus convidados como animais selvagens. Dado que iria estar presente o presidente da câmara considerou digno do seu estatuto a atribuição de leão para si. Para os secretários do presidente da câmara considerou a possibilidade das hienas. Para a mulher deste de leoa por razões de estatuto, como é óbvio. O problema surgiu quando se viu obrigado a escolher um animal para a amante do presidente da câmara que, inexplicavelmente, sabia que iria estar presente. C. Khunz resolveu então reconsiderar a possibilidade dos animais e trocar pela utilização de flores. Mais pensava no assunto menos conseguia chegar à conclusão de quais. Pensou então nos minerais. Nova indecisão. C. Khunz resolveu-se, então, pela solução mais fácil. Não haveria festa de aniversário. Desde esse dia nunca mais nenhum aniversário da barbearia foi comemorado. Se não se pede a sapateiro que toque rabecão por que razão se há-de exigir a barbeiro que tenha erudição?





Plano A, B e C

24 02 2007

C. Khunz teve várias ocupações durante a sua vida. Para todas elas tivera sempre um plano B caso algo corresse mal. Uma livraria fora um plano B para um atelier, o primeiro restaurante o plano B para uma curta carreira de escritor, o segundo restaurante o plano B para o primeiro.
Parecia-lhe, agora, estranho arranjar um plano B para uma actividade que fora concebida como um plano B para uma plano A. A C. Khunz pareceu, por isso, acertado conceber um plano C, para a barbearia, mas uma vez que os planos B têm cumprido a sua função ao longo dos tempos e têm bastado C. Khunz achou que não devia hostilizar uma tradição ancestral, que por pouco ancestral que fosse tem, como é costume, o hábito que a sustenta e o hábito é uma coisa demasiado antiga para não ser levado a sério. C. Khunz deu, então, o nome de plano C à barbearia. Ninguém percebeu porquê. «Partidários do plano B», pensou.





O original e a cópia

21 02 2007

C. Khunz tinha uma barbearia onde M. Hermann cortava o cabelo. Tesouras de vários números e cortes, navalhas com lâminas afiadas, frascos, pentes, escovas, perfumes e espumas governavam-na como soberanos observados, sobranceiramente, como um aristocrata por um peixe-dourado enclausurado num aquário desde a abertura da barbearia. Há quem desejando um quadro famoso se contente com uma gravura. Não podendo ter o oceano, C. Khunz tinha uma cópia aproximada: um aquário.
O peixe tinha escamas e barbatanas vermelhas. Era um peixe vermelho genuíno, orgulhoso da sua espécie e estatuto. Nadava vigorosamente serpenteando as águas, cortando-as e tingindo-lhes, desdenhosamente, o azul à passagem com a sua cor: o vermelho.
Os peixes vermelhos como todos os outros nascem no mar. Não nascem em aquários das lojas de animais de estimação. Não existem fábricas onde são feitos. Este não era excepção. Foi trazido, em tenra idade, do oceano directamente para um ovo de vidro que estava em cima de uma mesa, logo à entrada da barbearia de C. Khunz – o seu humano pai adoptivo.
Como fora trazido ainda novo para a sua nova casa, tivera pouco tempo para aprender a ser peixe:
– Caçar;
– Fugir aos predadores;
– Comunicar em linguagem de peixe, etc.
Felizmente, nada disso era preciso no seu novo lar. C. Khunz assegurava-se, diariamente, de que nada lhe faltava:
– Alimentava-o;
– Mudava-lhe a água;
– Falava com ele através do vidro;
– Acarinhava-o…
Estranhamente algo sucedeu. A princípio C. Khunz nem se apercebeu. Algo que sucede, frequentemente, com as coisas que nos estão mais próximas por falta de generosidade, em atenção, para com elas. Não deu conta, uma vez que é exigente, em tempo e dedicação, o corte da barba e cabelo. Tudo o que o peixe aprendera ao percorrer os mares foi sendo esquecido. Lentamente esqueceu como se caçava por entre as algas, pois nunca lhe faltava alimento, apesar de que para isso não tivesse de fazer alguma coisa. Gradualmente esqueceu-se dos seus predadores naturais, pois vivia sozinho no seu ovo de vidro. Acabou mesmo por se esquecer como se nadava pois não podia ir a nenhum lado.
Acabou, no entanto, por se esquecer do mais importante e, ao mesmo tempo elementar: que era um peixe. Certo dia C. Khunz encontrou-o a boiar, morto. Tinha morrido afogado. Esquecera-se de como respirar debaixo de água, disse um cliente a C. Khunz.
C. Khunz atendeu quinze clientes nesse dia, dez a quem cortou o cabelo, 4 a quem fez a barba e 1 a que aparou o bigode. Nunca mais comprou outro peixe-dourado e desfez-se do aquário. Uma cópia é sempre uma cópia. Percebendo isso, C. Khunz começou a ir mais vezes ver o oceano. Nada se compara ao original.