A importância do nome

13 05 2007

“Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens.”
Livro das evidências

Dá licença?, vociferou impetuoso o homem com a celeridade de quem cuida colher pai da forca.
– Ouviu? Importa-se de arredar o carro?
A solicitação bem poderia ter tido elaboração retórica mas tinha, entretanto, transposto a estrema da repreensão.
W. contrariou o reparo com silêncio. Sabendo-o, quando devidamente apreciado, de ouro seria para ele – que não possuía saldo supra zero – via exclusiva para dele se acercar. Não impressionou ao outro, no entanto, o apanágio aurífero da sua indiferença conquanto pôs a prazo a sua permanência no local ameaçando-o com a autoridade.
– Não ouve?, voltou a inquirir. Em W. não fez, todavia, a duplicação sobressair temor.
Não lhe era, também, visível característica estranha, membro extra, órgão acrescido ou apêndice. Não era criatura cuspida da humanidade por ter índole ou propósito aberrante, irrelevante ou inconveniente. Era um indivíduo vulgar mas que pelo trato se percebia de modo não banal e no qual pesava sobre a espádua o ónus de graça herdada, que lhe acentuava a curvatura lombar não pela gravidade da letra mas pelo encargo devido ao imposto da tradição imputada.
Ao nome identifica-se possibilidade de ser de guerra e reconhece-se ser lento no despontar do peso. Para W. era, igualmente, única propriedade de valia.
A sua linhagem que, como se costuma dizer, lanchava presentemente capim pela raiz por genérico falecimento tivera, nos idos 1900, riqueza apreciada em muitos contos de réis que o tempo e o moderado engenho para o negócio colocariam no carreiro do enxovalho económico.
Anos antes W. domiciliara numa casa de transmissão pretérita na mesma rua, a que agora embaraçava o escoamento num provecto edifício actualmente património do Ministério da Economia. Após a sua demissão de uma instituição financeira, onde trabalhava, por defraudamento congénere ao de Alves dos Reis, através da mala holandesa, a casa capitulou às mãos do Banco de Portugal e ele, após insistência na mercancia de café, nas da justiça.
Em W. raramente se percebia actividade certa. Ao que se dedicava convinha melhor o diz que disse do que afazer efectivo. Fixou-se no sul das Américas. Na Argentina, onde vivia de expedientes, que é uma forma a que carece confirmação de êxito seguro para o assegurar de subsistência. Mais tarde em época de embeiçamento brasiliense tornou-se amigo de ministros e secretários de estado, sobretudo do secretário de estado do Tesouro, cuja mãe, uma dama de felpa grisalha basta, lhe empresta o regaço e dinheiro sem retorno anunciado. Ambos cursam, regularmente, num botequim com cadeiras de quadril de bambu caduco, nas quais enlaçam conversas de filosofia de alcova.
Segue-se uma associação profícua com um fulano de desfastio avaro pela diversão, descendente de fazendeiro abonado que conquistaria para a bancarrota a economia familiar na qual W. se viria abrangido.
Após o divórcio que se seguiu a essa fase, W. voltou a Portugal. Nesse tempo não subia no elevador em horário frequentado por subalternos. O futuro fugira-lhe, irremediavelmente, no dia em que perdera a intendência sobre as suas loucuras e acabara agarrado nas teias da lei que não se compadeceu com a sua vocação de intrujão.
– Importa-se de desviar o carro? Não ouve?
De W. nem palavra. Temia uma investida de arrivistas que lhe sonegassem aquele estacionamento irrepreensível, mergulhado numa sombra cujo porte era ideal para a custódia de víveres que permaneciam nela como se estivessem numa arca frigorífica à temperatura ideal para a refrigeração.
O barão que servia de poleiro a uma centúria de pombos latagões em genuíno desvario de acasalamento observava-o, teso no bronze que lhe prendia os gestos imóveis pelos contornos estatuários. Para além dele e de umas quantas mães coragem, as suas cercanias eram estabelecidas por parceiros de dominó e leitores de periódicos, cujos ares de literato rivalizavam em galarim com o emplumado das aves estacionadas na estátua do barão.
Era isto pelas dezassete horas. Que, como é sabido, é tempo de correcção irrepreensível para o chá. A hora permitia perceber o apuro dos funcionários do café e a dificuldade em conviverem com a presença de W. e a sua viatura, em segunda fila, uma vez que o ritual das infusões não se compadece com procedimentos ocupacionais, mesmo de alguém de proeminente berço e correspondente passado e apelido como W..
– Importa-se de afastar o carrinho?, repetiu o funcionário.
– Tenho de chamar a polícia?
W. permaneceu imperturbável. Retocou o vinco das calças – extraviado desde 1975 quando comemoraram as bodas de ouro – que envergava. Esmerou-se no traçar de perna que fazia, pela perfeição do ângulo conseguido, sobressair o turco das meias que calçavam uns sapatos cujo verniz, ao contrário de qualquer capitão de embarcação que se preze, os tinha abandonado na primeira oportunidade.
O carrinho de W. parecia prestes a ver expelidos do abdómen os sacos que transportava e que eram em contabilidade suficiente para plastificar franca superfície enquanto o demo esfrega uma vista e refrega a outra. W., a quem nem o nome – embora de monta – destituíra os interiores da fome estava ali por o estômago lho ter exigido. Devido à escassez de conduto no bojo. W., que rapidamente anuiu ao pedido deste, emprestou equivalente celeridade ao fazer-se chegar ao local. Mal aportou ao sítio anunciou, imediatamente, a sua intenção de se ver servido de uma carcaça exemplarmente impermeabilizada a manteiga de superior qualidade que diluiria com o auxílio de tisana apropriada. Não aceitaria reles côdea sem préstimo alimentar para o seu exigente papo. Mas vendo agora volvidos três quartos de hora sobre o seu pedido, percebeu que não seria esse o desfecho. E ao ver aproximar-se de si e do seu carrinho farto em cartão canelado e cobertores, dois agentes percebeu que os epílogos para as acções têm regras que ultrapassam a vontade do autor. Percebia, agora, enquanto ziguezagueava com o carro de compras deduzido ao hipermercado, que o nome embora importe, alicia atenção devido a quem o usa. Talvez até para nome importante se exija merecimento apropriado. E, afinal, a única coisa que conseguira com o seu talento fora o crédito de o sujar. W. morreu poucos dias depois. Quem o encontrou ao estudar a fotografia do bilhete de identidade, burlado pela antiguidade, pensou não tratar-se dele concluindo tratar-se de carteira subtraída. A sua campa pobre em inscrições tem um número, ano da morte e no sítio do nome apenas Zé-ninguém.


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2 responses

15 05 2007
julee22

excelente blog!!!

4 09 2008
Violeta Cotovio

Hum…
Alguém me sabe dizer de quem é a autoria do dito Livro das Evidências? Tudo o que sei é que Saramago utilizou a mesma citação que este post para o seu “Todos os Nomes”, nada mais…

Shalom*

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