Vizinhança

31 01 2007

M.Hermann tinha um vizinho que era vizinho de outro vizinho de um escritor que afixara na sua porta um letreiro que dizia «Aceitam-se finais para histórias». Duas portas ao lado (ou talvez três) desse vizinho um outro, também escritor, afixara também um anúncio (invejando a possibilidade de sucesso da iniciativa) que dizia «Aceitam-se inícios para histórias». Podia pensar-se que se tivessem unido numa sociedade. Uma vez que juntando o melhor de dois mundos se pudesse pressupor o nascimento de um outro, só que perfeito. Isso nunca sucedeu pois sempre lhes faltou um terceiro associado para esse empreendimento. E logo uma parte fundamental. Alguém que entrasse com o desenvolvimento.





Inquérito sobre o valor das letras

30 01 2007

Não há dúvida que as letras são ocas, pensou M. Hermann. Que não reside outro tanto de valor em si para além do quebrar o silêncio que, para mais, se diz de ouro. Mesmo pressupondo-lhes uma pena capital, que lhes confira significância extraordinária, a existir será ela capaz de as dotar de interesse superior ao que reside na penicilina?
Possuem as letras prestançia insubstituível?, questionou M. Hermann.
Como a do ar?
Até onde estamos dispostos a ir no seu investimento?
Preferimo-las radicais? Liberais ou conservadoras?
Têm sexo ou incitam-no? Clube, orientação religiosa ou grupo sanguíneo?
Iluminarão os interstícios mais recônditos?
Terão propriedade suficiente para fazer sobressair o melhor de nós?
Farão brilhar a língua?
Despertam em nós atracção idêntica à da gravidade? Ou mera prosápia?
Sobreviverão ao pragmatismo mais materialista?
Serão o aeróstato ideal para transportar ideias?
Influenciará nelas caligrafia, acentuação, tamanho ou proveniência? Como a arquitectura concede a sobrevivência ao edifício.
Permanecerá nas crónicas o marulhar dos dias? Nos contos o viver do humano que em nós assiste?
De que nos vale a metafísica de Pessoa? Ou a moral de Kant? Para que nos serve um soneto? E um romance?
Haverá na poesia medicina importante para a alma? Na literatura, em geral, préstimo para fazer avançar o mundo?
Talvez. Veremos! Cada coisa a seu tempo, disse para si, olhando esperançoso para uma enciclopédia literária de 50 volumes que ia consultar.