Normalidade

28 04 2007

Um familiar de M. Hermann teve uma doença muito grave. Na altura toda a gente o tranquilizou, já que diziam que era uma coisa normal. Apesar disso, o familiar de M. Hermann acabou por morrer. Parece que para a clínica geral, ao contrário da psiquiatria, a normalidade não é relevante.





Os clientes de C. Khunz

20 04 2007

O número de sócio de C. Khunz na associação de barbeiros era o 5673.Não havia mais ninguém na associação de barbeiros com o número 5673 o que o tornava inconfundível. Embora isso só acontecesse por causa de um algarismo C. Khunz tinha nisso orgulho.
Apesar de só ser inconfundível por causa de um algarismo C. Khunz tinha características próprias. Começava a fazer a barba aos seus clientes sempre da esquerda para a direita. O cabelo cortava-o da direita para a esquerda. Demorava, exactamente, cinco minutos e meio a fazer uma barba e sete minutos e meio a cortar um cabelo. Independentemente do tamanho. Num bom dia C. Khunz gastava uma embalagem de creme de barbear. Num mau dia ficava-se pelos dois terços.
C. Khunz gastava mensalmente 150 caixas de lâminas de barbear, 6 frascos de after-shave e 10 de shampôo.
C. Khunz tinha 46 anos e a média de idades dos seus clientes era de 36 anos. Havia por isso uma diferença de 10 anos entre a sua idade e a média de idades dos seus clientes. 10 anos era, exactamente, o tempo que C. Khunz tinha a barbearia. Como na maioria das coincidências não havia muito a explicar.
C. Khunz tinha muitos clientes. Tinha um cliente que era músico e que era bastante reservado. Tinha outro que era actor e razoavelmente extrovertido. Outro que era agente artístico que umas vezes era tímido e discreto e outras expansivo e falador e que dizia ter familiares provenientes da família do Sr. La Palice que como se sabe quinze minutos antes de morrer, ainda, estava vivo. Havia, também, dois que eram amigos. Um – com baixa auto-estima – achava que a melhor perspectiva sobre as coisas era a dos outros e o outro – sem problemas de auto-estima – que achava que a melhor (e provavelmente única) perspectiva sobre as coisas era a sua.
Outro cliente, diferente de todos os outros, mas que recorria a C. Khunz pelas mesmas razões era, extremamente, metódico. Sempre que ía à barbearia pedia que C. Khunz lhe cortasse o seu cabelo debaixo para cima, da esquerda, para a direita e a barba no sentido inverso dos ponteiros o que era muito complicado para C. Khunz pois começava a fazer a barba aos seus clientes sempre da esquerda para a direita e o cabelo cortava-o da direita para a esquerda.
Um cliente que gostava de ser surpreendido solicitou-lhe que nunca lhe cortasse o cabelo da mesma maneira. Dava-lhe total liberdade para lho aparar segundo a sua inspiração, engenho e capacidade técnica. Da barbearia saiu com o cabelo com consistência cor e cortes estranhos, ridículos, emabaraçantes ousados mas nunca iguais. A ninguém pediu C. Khunz explicações pois como é sabido para o melhor e para o pior o cliente tem sempre razão.





Comparações e primeiras impressões

9 04 2007

Q uando C. Khunz abriu a barbearia muitos o compararam com o antigo dono cuja prática o tornara célebre a quarteirões de distância e procurado por pessoas de outras cidades que só em si depositavam confiança para lhes fazer a barba e cortar o cabelo. Foi muita a suspeita de que C. Khunz não estivesse à altura de semelhante herança. Os primeiros tempos não foram fáceis. Talvez porque tinha um problema que agora o prejudicava bastante: as primeiras impressões.
– «Nunca tive muito sucesso com a primeira impressão», dizia. Aliás, C. Khunz dava tudo para passar directamente para a seguinte.
– «Sou um tipo de segundas impressões. A primeira só me prejudica. Pressupõe cerimónia, cortesia e acatamento que não disponibilizo. Passava bem sem ela. Porque raio tem de haver primeira impressão? Porque raio tenho de arcar com as consequências de uma coisa em que não tenho responsabilidade? Dá-se demasiada importância à primeira impressão. A primeira impressão só favorece tipos como Valentino e eles existem numa relação de 0.4 Valentinos para 5879 C. Khunz’s. Devia existir um decreto que ilegalizasse o uso da primeira impressão. Que a tornasse obsoleta. Sem préstimo. Odiada. Votaria num partido que tivesse essa proposta. Mobilizaria todos os que sofressem do flagelo da primeira impressão. Seríamos muitos. Poucos a princípio, é certo, que ninguém gosta de admitir ser mau na primeira impressão mas o número aumentaria, até sermos mais dos que usufruem, há anos, da primeira impressão. Abaixo a primeira impressão. Viva a segunda, terceira ou quarta.» Esta era a posição de C. Khunz em relação à primeira impressão que pouco ou nada mudou ao longo dos anos.
No fim-de-semana da primeira semana de actividade da barbearia o jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz marcou três golos e foi considerado o melhor jogador da jornada. Durante a semana seguinte foi idolatrado por todos. Todos os jornais apresentaram artigos sobre ele e as televisões disputaram a sua comparência nos seus horários nobre. No fim-de-semana da segunda semana de actividade da barbearia o jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz foi expulso durante o jogo acom a equipa rival e foi considerado o pior jogador da jornada pela sua falta de desportivismo. No fim-de-semana da terceira semana de actividade da barbearia ninguém se lembrava do jogador favorito da equipa favorita de C. Khunz.
No segundo mês de actividade C. Khunz tinha mais clientes do que o antigo dono da barbearia.