Dificuldades discursivas

27 02 2007

C. Khunz não conseguia falar em público. Carecia para isso de articulação e prosápia. No dia da abertura da sua barbearia, durante a inauguração, solicitaram-lhe que, extemporâneo, brindasse os convidados com discurso. C. Khunz vendo-se em apuro concebeu uma estratégia para ultrapassar o seu embaraço. Uma vez que é sabido que, para a maioria, dos infortúnios há remédio ajustado. E que é da necessidade que saíem as melhores respostas pela capacidade adelgaçante que tem para com o engenho. Sabendo que o problema para si eram as pessoas pois quando ensaiava os discursos em casa tudo lhe saía bem, primeiramente resolveu imaginar a sala vazia. Não resultou e verificou que isso era, até, pior pois era-lhe difícil dirigir-se a um público abstracto. Resolveu, assim, imaginar as pessoas como objectos. Dividiu o auditório em três classes: objectos esféricos, cilíndricos e cubos. Depois identificou-os para mais facilmente se dirigir a eles: lápis, esferográficas, caixas e bolas. Fragmentou-as, posteriormente. em sub-classes: lápis nº1, 1A e B nº2, C e D nº3, A, nº4, F, nº5, A, D, E e F, esferográficas pretas, vermelhas e azuis, de ponta fina e grossa, caixas grandes, pequenas e assim-assim e bolas de uma, duas, três e quatro cores.
Reparou que durante o seu discurso, uma vez que não havia lugares marcados, os lápis nº1 A, trocaram de lugar com os B e os nº2 ocuparam os dos C e D os nº3 com os nº4 e nº5 as esferográficas pretas, vermelhas e azuis, de ponta fina e grossa saíram em grupo, deixou de ver as caixas grandes, pequenas e assim-assim bem como as bolas de uma, duas, três e quatro cores. Todo o seu horizonte de sentido tinha sido alterado. Entrou em pânico. Deixou de reconhecer o seu público. O que, como se sabe, é terrível e impossibilita uma comunicação efectiva. Dirigia-se a um público e, afinal, falava, com outro. O seu discurso não estava, claramente, adaptado ao seu auditório. C. Khunz não conhecia o seu público e, por isso, não o conseguia conquistar.
No primeiro aniversário da barbearia C. Khunz traumatizado como que sucedera no ano anterior e uma vez que o seu problema se mantinha imaginou os seus convidados como animais selvagens. Dado que iria estar presente o presidente da câmara considerou digno do seu estatuto a atribuição de leão para si. Para os secretários do presidente da câmara considerou a possibilidade das hienas. Para a mulher deste de leoa por razões de estatuto, como é óbvio. O problema surgiu quando se viu obrigado a escolher um animal para a amante do presidente da câmara que, inexplicavelmente, sabia que iria estar presente. C. Khunz resolveu então reconsiderar a possibilidade dos animais e trocar pela utilização de flores. Mais pensava no assunto menos conseguia chegar à conclusão de quais. Pensou então nos minerais. Nova indecisão. C. Khunz resolveu-se, então, pela solução mais fácil. Não haveria festa de aniversário. Desde esse dia nunca mais nenhum aniversário da barbearia foi comemorado. Se não se pede a sapateiro que toque rabecão por que razão se há-de exigir a barbeiro que tenha erudição?





Plano A, B e C

24 02 2007

C. Khunz teve várias ocupações durante a sua vida. Para todas elas tivera sempre um plano B caso algo corresse mal. Uma livraria fora um plano B para um atelier, o primeiro restaurante o plano B para uma curta carreira de escritor, o segundo restaurante o plano B para o primeiro.
Parecia-lhe, agora, estranho arranjar um plano B para uma actividade que fora concebida como um plano B para uma plano A. A C. Khunz pareceu, por isso, acertado conceber um plano C, para a barbearia, mas uma vez que os planos B têm cumprido a sua função ao longo dos tempos e têm bastado C. Khunz achou que não devia hostilizar uma tradição ancestral, que por pouco ancestral que fosse tem, como é costume, o hábito que a sustenta e o hábito é uma coisa demasiado antiga para não ser levado a sério. C. Khunz deu, então, o nome de plano C à barbearia. Ninguém percebeu porquê. «Partidários do plano B», pensou.





O original e a cópia

21 02 2007

C. Khunz tinha uma barbearia onde M. Hermann cortava o cabelo. Tesouras de vários números e cortes, navalhas com lâminas afiadas, frascos, pentes, escovas, perfumes e espumas governavam-na como soberanos observados, sobranceiramente, como um aristocrata por um peixe-dourado enclausurado num aquário desde a abertura da barbearia. Há quem desejando um quadro famoso se contente com uma gravura. Não podendo ter o oceano, C. Khunz tinha uma cópia aproximada: um aquário.
O peixe tinha escamas e barbatanas vermelhas. Era um peixe vermelho genuíno, orgulhoso da sua espécie e estatuto. Nadava vigorosamente serpenteando as águas, cortando-as e tingindo-lhes, desdenhosamente, o azul à passagem com a sua cor: o vermelho.
Os peixes vermelhos como todos os outros nascem no mar. Não nascem em aquários das lojas de animais de estimação. Não existem fábricas onde são feitos. Este não era excepção. Foi trazido, em tenra idade, do oceano directamente para um ovo de vidro que estava em cima de uma mesa, logo à entrada da barbearia de C. Khunz – o seu humano pai adoptivo.
Como fora trazido ainda novo para a sua nova casa, tivera pouco tempo para aprender a ser peixe:
– Caçar;
– Fugir aos predadores;
– Comunicar em linguagem de peixe, etc.
Felizmente, nada disso era preciso no seu novo lar. C. Khunz assegurava-se, diariamente, de que nada lhe faltava:
– Alimentava-o;
– Mudava-lhe a água;
– Falava com ele através do vidro;
– Acarinhava-o…
Estranhamente algo sucedeu. A princípio C. Khunz nem se apercebeu. Algo que sucede, frequentemente, com as coisas que nos estão mais próximas por falta de generosidade, em atenção, para com elas. Não deu conta, uma vez que é exigente, em tempo e dedicação, o corte da barba e cabelo. Tudo o que o peixe aprendera ao percorrer os mares foi sendo esquecido. Lentamente esqueceu como se caçava por entre as algas, pois nunca lhe faltava alimento, apesar de que para isso não tivesse de fazer alguma coisa. Gradualmente esqueceu-se dos seus predadores naturais, pois vivia sozinho no seu ovo de vidro. Acabou mesmo por se esquecer como se nadava pois não podia ir a nenhum lado.
Acabou, no entanto, por se esquecer do mais importante e, ao mesmo tempo elementar: que era um peixe. Certo dia C. Khunz encontrou-o a boiar, morto. Tinha morrido afogado. Esquecera-se de como respirar debaixo de água, disse um cliente a C. Khunz.
C. Khunz atendeu quinze clientes nesse dia, dez a quem cortou o cabelo, 4 a quem fez a barba e 1 a que aparou o bigode. Nunca mais comprou outro peixe-dourado e desfez-se do aquário. Uma cópia é sempre uma cópia. Percebendo isso, C. Khunz começou a ir mais vezes ver o oceano. Nada se compara ao original.





Capitalismo II – a especialização

15 02 2007

F ace ao excelente desempenho de M. Hermann, ninguém estranhou que a somar às suas responsabilidades habituais se juntasse, um dia, a de distribuir esferográficas pretas e vermelhas pelos funcionários. Não as azuis – mais requisitadas – uma vez que para esse tipo de responsabilidade se devia possuir no mínimo 15 anos de experiência e falar quatro línguas ainda em uso e dominar uma morta. Pelo que essa cor era do encargo da secção 124A em parceria estreita com o departamento 23M. Em todo este processo, M. Hermann contaria com a preciosa colaboração do jovem estagiário, já com formação adequado para essa atribuição, embora não pudesse estabelecer contacto táctil com os objectos – só visual – sendo que não dominava nenhuma língua morta.
M. Hermann foi informado por um membro da presidência – com essa única função – de que o capitalismo não sobrevive sem especialização e por isso contavam com ele. A reunião demorou, exactamente, cerca de 8 minutos e 13 segundos, o que era um tempo aceitável para uma reunião daquele género e que permitiria ao responsável por aquele tipo de reunião realizar todas as reuniões agendadas para aquele dia e ainda planificar as 250 que tinha que fazer durante a semana. No final a porta foi fechada por um funcionário seleccionado de entre 136 candidatos perfeitamente habilitados para fechar portas. Depois de saírem, M. Hermann teve conhecimento que o funcionário seleccionado de entre 136 candidatos perfeitamente habilitados para fechar portas a abriu para entrar um outro indivíduo que despejou os cinzeiros e os caixotes do lixo sem, no entanto, limpar o pó, tarefa exclusiva responsabilidade da secção 75C detentora, após vencer concurso para o biénio 2006-2007, do cargo de limpeza de objectos conspurcados por poeiras transportadas pelo ar ou pessoas.
M. Hermann saiu satisfeito da reunião e com esperança que lhe atribuíssem novas incumbências. Quem sabe até substituir lâmpadas. Pelo menos as de 125 Watts pois tinha consciência que lhe faltavam habilitações para mais.





Capitalismo I – necessidades

13 02 2007

M. Hermann teve, em certo momento da sua vida, um emprego no qual tinha um jovem estagiário sob a sua responsabilidade. O jovem lidava com reverência M. Hermann tratando-o por chefe e ambos tinham uma relação, no mínimo, cordial.
Sempre que acabava o papel da impressora e da fotocopiadora era M. Hermann que o dava ao jovem, depois de M. Hermann o ter solicitado ao seu superior hierárquico, que também o tinha solicitado ao seu director e este ao presidente que guardava o papel num cofre com três chaves distribuídas por três pessoas – uma do sexo feminino, outra do sexo masculino e uma terceira hermafrodita. Depois de se seguir a cadeia hierárquica, na totalidade, o jovem estagiário punha as folhas nas respectivas máquinas que, por seu turno, ficavam aptas para as suas funções de fotocopiar e imprimir. A situação complicava-se quando faltava tinta às máquinas uma vez que os tinteiros estavam a cargo da secção 127A – isto para as fotocopiadoras – e da secção 3452W no que respeita às impressoras – sendo os tinteiros encaminhados para M. Hermann que por seu turno os entregava ao jovem estagiário. Seguindo a hierarquia, a situação durava habitualmente cerca de sete horas e cinquenta e seis minutos a ser resolvida ficando as máquinas, somente disponíveis no dia seguinte. Os tinteiros ficavam guardados, durante a noite, num segundo cofre especialmente concebido para este tipo de situações com cinco chaves distribuídas por pessoas cujo sexo se desconhecia.
A juntar a esta importante função, M. Hermann tinha, também, a incumbência de verificar todos os lápis do escritório. O jovem estagiário afiava os lápis. Obviamente não todos, uma vez que era estagiário. Só os de numeração inferior a 4, uma vez que os restantes faziam parte das atribuições da secção 7890C. M. Hermann verificava se eles estavam em condições. Era este o estágio do jovem e a chefia de M. Hermann. Pode parecer pouco mas sabe-se que o capitalismo não funciona sem lápis aguçados e sem papel, pelo que o trabalho de ambos era crucial para o funcionamento da economia.





A vacina

11 02 2007

M. Hermann conhecia um cientista que conhecia outro cientista (é sabido que a comunidade é pequena e toda a gente se conhece) que falava tão baixo que nem ele se ouvia. Ninguém, por essa razão, o levava a sério. Após uma investigação de anos, o cientista conhecido de M. Hermann, descobriu uma importante vacina. Embora contasse a toda a gente o seu achado, ninguém o ouviu. Como ninguém se apercebeu da sua descoberta a vacina foi reinventada anos mais tarde. Como o outro investigador falava mais alto do que o conhecido de M. Hermann ficou com a patente. A partir desse dia o cientista conhecido de M. Hermann começou a falar mais alto. Infelizmente nunca mais descobriu nada.





Biografia

6 02 2007

M. Hermann concorreu a uma vaga para um emprego a que acorreram para selecção 897 candidatos.Na entrevista para o emprego pediram a M. Hermann que escrevesse, no máximo de 150 palavras, o que achava que melhor o definia. No dia seguinte, depois de todos os outros candidatos já terem entregue os seus textos M. Hermann entregou o seu. Tinha 500 páginas escritas a Arial 11 em espaço simples. Quando o chamaram perguntaram-lhe porque tinha escrito tanto? Se tinha assim uma vida tão preenchida? M. Hermann abanou negativamente com a cabeça. Mal começara tivera muita dificuldade com o início da sua biografia. Uma vez ultrapassado esse imbróglio inicial a meio, quando estava prestes a ultrapassar o limite de palavras exigido constatou, porém, que sofria doutro mal: não tinha espírito de síntese.





A importância do interesse

5 02 2007

M. Hermann vivia numa cidade onde 15.754 pessoas tinham nome igual ao seu. M. Hermann não sabia se gostava que 15.754 pessoas tivessem nome igual ao seu. Isto embora desconhecesse se existia um número que não lhe importasse. Ensaiou até um cálculo com base numa fórmula para achar o número ideal de nomes repetidos de cidadãos para o perceber. O resultado foi, porém, inconclusivo.
Durante muito tempo pensou nisso. Afinal, o nome é uma coisa séria pelas características que possui e pela função que desempenha: dar nome.
A certa altura deixou de o fazer e isso deixou de o perturbar. Como se quando não se vê importância nas coisas elas deixassem de interessar.





Para existir é preciso ter nome

4 02 2007

M. Hermann teve um problema de saúde durante a noite. Telefonou para uma linha de atendimento para que o ajudassem. Do outro lado uma Sra., preparada especialmente para aquela função e com anos de experiência, perguntou-lhe pelo que tinha. Não conseguiu dar um nome ao seu padecimento, pelo que a Sra. com anos de experiência não o conseguiu ajudar. Argumentou que para bom entendedor meia palavra basta. A Sra. preparada especialmente, para aquela função sentiu-se ofendida. Embora não soubesse dar um nome nem à ofensa nem ao que ela tinha despertado em si. Solicitou, novamente, a M. Hermann que encontrasse um nome para o que sentia. Nada. Então a Sra. preparada especialmente para aquela função e com anos de experiência desistiu.
M. Hermann telefonou, então, para outra linha com outras Sras. preparadas, especialmente, para aquela tipo de função e com anos de experiência. Uma voz pré-programada pediu a M. Hermann que caso a sua doença principiasse por uma letra compreendida entre o A e o F premisse a tecla 1, entre uma letra situada entre o G e o L a tecla 2, entre o M e o Q 3, entre o R e V a tecla 4 e 5 para XWYZ.
Como M. Hermann desconhecia o nome para o que tinha não pode premir nenhuma tecla.
A falta de nome fizera com que o problema de M. Hermann fosse impossível de identificar de entre todas as enfermidade conhecidas pela medicina e analisadas em tratados médicos. Era como se não existisse. No dia seguinte, no entanto, o estado de M. Hermann agravou-se, pelo que o problema continuava a existir independentemente dele, ainda, desconhecer o nome da sua doença. Afinal, para existir não é preciso ter nome.





M. Hermann – Um quê sem porquê

4 02 2007

M. Hermann era o que se considera um homem moderno. Tinha dois terços das características mínimas necessárias. Provavelmente até pós-moderno, embora com convicções clássicas. Tinha investido nisso esforço, tempo e engenho. Era um homem comum, igual a tantos outros, ou talvez essa não fosse a melhor maneira de o apresentar, uma vez que não gostava dos assuntos da maioria.
Vivia no nº 17. Numa casa situada numa longa recta, mais exactamente no quilómetro 8, no ponto onde ela terminava e numa curta distância começava a curvar. A habitação parecia uma embarcação especial com proa pontiaguda encalhada no cimento, sem mastro ou velas suficientemente fortes para a arrancar dele. Ainda bem, porque pertencia àquele grupo sem ter para onde ir.
Não se pode dizer que fosse alto ou baixo, gordo ou magro. Estava entre uma posição que se destaca pelo excesso e outra que aparta pelo defeito. No meio. Que, como se sabe, é um bom sítio para se estar uma vez que não compromete.
M. Hermann não era indeciso. Embora essa convicção pudesse surgir facilmente durante o contacto consigo. Talvez só um pouco (ou muito) hesitante. Por essa razão (ou provavelmente outra ou outras) tentava combinar o melhor dos mundos possíveis. Ora, isso é muito difícil de conseguir uma vez que o melhor dos mundos possíveis é algo, por vezes, impossível de atingir. E o impossível é inultrapassável. Para resolver essa dificuldade, M. Hermann optou por estar no meio. Que, como já foi dito e antes disso já era sabido, é um bom sítio para se estar uma vez que não compromete.
Por essa razão (ou provavelmente outra ou outras, como já foi dito e antes pressuposto) gostava mais dos números pares mas servia-se, mais regularmente, dos ímpares. Preferia o doce mas escolhia o amargo. Usava roupa escura mas gostava de tons claros. Ia para a direita mas desejava a esquerda. Todos achavam que havia um quê em M. Hermann a que faltava um porquê. Ninguém sabia explicar a personalidade de M. Hermann. Alguns diziam que tinha temperamento de político uma vez que, também a essa classe se reconhece, por vezes, a antipatia pelo comprometimento. Estimularam-lhe, por isso, o gosto pela política. M. Hermann não tinha, porém, aspirações políticas. Achava que estava bem representado governativamente; dado que a maior parte das vezes também os políticos, tal como ele, não sabiam o que decidir. A sua condição permaneceu inalterada. Até hoje as pessoas acham que M. Hermann tem um quê para o qual não encontram o porquê.