A loja de pianos

30 05 2007

Cada coisa acha feliz matrimónio na idade para que foi predestinada. Nisso não reside dúvida nem originalidade. Talvez por isso Fradique não tivesse desimpedido excepcional energia para mudanças uma vez elas serem aliciadas por épocas mais precoces em que as inocências, ainda, não foram perdidas e o mundo é matéria disponível e atractiva para aí se encetar transformação. Numa altura em que, ainda, se vêem nos moinhos, gigantes, um pouco antes de se desbaratar ânimo de Quixote e auferir úlcera de azeiteiro. É essa a altura de muda e não quando dela devia ter frutificado sementeira em cacho. Também, talvez, por isso a casa de Fradique permanecia naquilo que sempre fora sem aí se ver ciclópico ou hercúleo ente uma vez que sempre fora e seria azenha, ou melhor uma loja de pianos. Também os pianos eram aquilo de que não mudariam: gastos, desusadas carcaças sem préstimo além da decoração pois ao contrário da música encontra mais valor ela na forma do que no disponibilizar da função em condições ideais de utilização.
Em Fradique nunca desabrochou apetite ou habilidade, das que fazem os feitos grandiosos, para uma actividade mais aliciante do que a de negociar pianos sem valimento. Possivelmente por encontrar na idade impedimento para novas conquistas, do mesmo modo que burro velho não apreende novato pronunciar.
A loja dos pianos era a única realidade conhecida de Fradique fazendo-o imune à novidade e temente ao desconhecido – tal como os antigos mareantes capacitados da conclusão do mundo no terminar do horizonte –, muito embora a apreensão não os atrair a voltar costela ao risco transformando-o em aliciante imprescindível e não embaraçante da plumagem necessária para voos mais altos que, assim, permanecem em terra firme esperando o dia de amanhã que, sendo sempre melhor peca por nunca chegar.
Os anos passaram apressados, como se tivessem melhor sítio para onde ir, sem tempo para ver dar ponto sem nó. Fradique continuava com a pesquisa dos pianos. O piano é semelhante ao clavicórdio e ao cravo e conta duas versões modernas: o piano de cauda e o piano vertical. A monotonia das versões rivalizava, no entanto, com a diversidade do aparato em que Fradique os encontrava: afónicos, privados de oitavas, com armação e cordas laças, martelos desalinhados, com teclados desdentados, com pedais inutilizados e caixas de ressonância asmáticas.
Não eram pianos de pianistas consagrados como Sviatoslav Richter, Vladimir Horowitz, Hamilton Godoy, Wladyslaw Szpilman, Mozart, Chopin, Liszt, Tim Rice-Oxley ou Sergei Rachmaninoff. Mas de mãos moribundas de talento.
O trabalho de Fradique não fazia mossa na rotação do mundo. Não possuía aquela natureza especial que torna certos trabalhos capazes de fazerem a diferença. A terra continuaria a girar com o mesmo empenho mesmo se ele pusesse, como é prática dizer, os pés à parede e dissesse: «basta!».
Não possuía romantismo, ou atractivo particular a laboração de Fradique. Não acontecia, como sucede com certos objectos cuja banalidade da sua função é extravasada por uma luminância, coloração ou sonido que o fazem passar a fronteira do comum para entrar num pequeno grupo de eleitos, de difícil acesso, cujas características são apreciadas pela sua singularidade. Pois é sabido que o ‘único’ é uma propriedade cobiçada como uma espécie de ouro de brilho vivo que sobressai até ao olho com menos apetite pelo diferente.
Não tinha a loja de pianos propriedade, de miolo, semelhante ao descrito. Era exíguo o seu encanto que emparelhava, perfeitamente, com o mirrado das suas dimensões, num par mais irrepreensível do que Fred Astaire e Ginger Rogers ou Laurel e Hardy.
Dava-se com a loja de Fradique o que acontece em África com os elefantes, pelo menos quando existiam em quantidade bastante para manter um instinto – sobrevivente como a tradição se existirem elementos em cifra suficiente para o perpetuar –, que quando pressentiam a morte se encaminhavam como se tivessem uma bússola interna para um local que a espécie escolhera, há séculos, para morrer. A loja era o sítio que parecia ter sido preferido como derradeira domicílio para pianos exangues.
Foi, porém, quando Fradique foi a casa de uma determinada família alemã que tudo tomou um renovado trilho. Pelo menos na sua cabeça. Ia preparado, como sempre, para comunicar uma proposta desvalorizada pelo piano que lhe tinham anunciado. Porquanto quando se compra o defeito até se inventa. A família mudara-se recentemente da Baviera para Lisboa trazendo consigo o instrumento, uma antiguidade que permanecia na família há tantas gerações que se lhe perdera a contabilidade. Fradique circunda o piano. Olha-o, por raso, nas miudezas. Abaixado para não lhe escapar pestilência. De cima para lhe apreciar coloração. Bate-lhe na madeira para lhe investigar caruncho. Toca-lhe nas teclas para lhe perceber refinação. Numa dessas incursões apercebe-se dumas iniciais gravadas no dorso do piano: L.V.B. Estaca. O seu espírito perde-se em lucubrações. A partir dali de pouco lhe valerá. Seria possível?
Ludwig Van Beethoven? Recusando antever o óbvio, ou seja a improbabilidade daquele ser o piano do compositor, Fradique confirma para si a identidade das iniciais gravadas uma vez que já cegara em si a capacidade de discernir com tino os factos. Sim, Ludwig Van Beethoven. Aquela era o piano de Ludwig Van Beethoven. Afinal, a família era antiga, abastada e alemã. Fradique percebe que se pode muito bem escrever direito por linhas tornas e que aquela descoberta, embora provocada pela coincidência, teria influência fulcral no seu destino compensando-o dos anos desperdiçados numa loja bafienta de pianos. E leve é a dor que o siso encobre. Ou, naquele caso, a falta dele. Na sua cabeça comprovava-se que, mais uma vez, certa nomenclatura de acontecimentos permite que a realidade ultrapasse, em muito, a ficção mais ousada.
Fradique desconhecia, no entanto, a história de Leopoldo Vaz Boaventura o filho da governanta da família que um quarto de século antes tinha pelo seu punho estampado as sua iniciais no piano o que valera à sua mãe o despedimento e a ele uma valente sova. Mas talvez isso, também, não lhe importasse muito uma vez que, em certas alturas, vive em nós um talento imensurável para justificar o indefensável. E a ignorância pode ser má conselheira até porque, no fim a verdade vence, o que a faz desventurada de virtudes mas se dos enganos vivem os escrivães porque não, também, felicidade semelhante para quem tem uma loja de pianos.


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3 responses

6 09 2007
Ailéh

Gostei!!! e isso basta!!!

4 11 2007
Velaquez

http://bloguedasartes.blogspot.com/

gostava que contribuisses neste novo blogue.

le os Estatutos que publicámos e pensa nisso:)

abraço

4 11 2007
Velaquez

ja agora…

somso colegas da Minguante;)

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